O Primeiro Terremoto da Minha Vida

(Aldo Della Monica)



Cama boa, aquela do apartamento da Rua Morandé, no centro de Santiago. Sono pesado, desses que consertam o corpo e a alma depois de uma boa caminhada no dia anterior.

Sim! Quer conhecer Santiago? Vá de metrô e a pé. De carro, é missão impossível. Aquilo lá não anda. Já a pé, você vai sorvendo tudo com mais gosto: o ritmo da cidade, as cores, os gestos. Um sem-número de casais jovens empurrando seus bebês bochechudos e felizes nos carrinhos. Incrível — nas carinhas luminosas dos pequenos e no semblante dos pais dá pra sentir uma esperança calma de futuro estável, possível.

E os cães... ah, os cães! Muitos. Em sua maioria com cara de pastor alemão, donos das ruas, deitam-se e dormem como se o mundo fosse deles — saciados, serenos, com aquela pachorra de quem sabe que não será incomodado. Até no Palácio La Moneda, a presidenta deixa os peludos por lá, dormindo à sombra, bem tratados pelos carabineros de Chile. Nenhum cão magro. Nenhum maltratado. E a maioria deles sem dono. Ou melhor — com o teto simbólico de um país que os respeita.

As pessoas, então... Por várias vezes, enquanto lutávamos com o mapa na mão tentando nos localizar, algum chileno se aproximava com sorriso nos lábios, perguntando se precisávamos de ajuda. Todos, sem exceção, esforçavam-se para decifrar nosso portunhol sofrível e nos guiavam com gentileza.

E agora, presta atenção: não vimos uma só criança pobre nas ruas. Nenhuma. Nem nos semáforos, nem nas praças. E olha que rodamos o centro e vários bairros — tudo a pé. Nenhuma criança ou adolescente abandonado. Vimos, no máximo, um ou outro “ceguinho” balançando sua latinha na esperança de uma moeda caridosa. Crianças e jovens? Só em bandos, voltando da escola, visitando museus, brincando nas inúmeras praças — todas lindas, limpas e bem cuidadas.

...Mas como eu dizia, nosso sono estava uma delícia. Reposição de energia na veia.

Até que um sonho esquisito veio bagunçar a dormida: eu estava tendo convulsões, mexendo braços e pernas como um boneco de posto, fazendo o colchão sacudir todo. Um pesadelo desses? Claro que acordei assustado. Só que o pesadelo estava só começando: não era o colchão que tremia... era o apartamento inteiro, no 32º andar. Aquilo parecia um barquinho perdido em um tsunami do Pacífico. Lustres virando pêndulos histéricos. O chão dançava. Sentei no chão, o que foi o máximo de sanidade que consegui reunir naquele momento.

Assim que os tremores — digo, minhas convulsões — deram uma trégua, corri até o interfone para “preguntar” ao nosso "porteiro amigo" o que estava acontecendo.

— ¡Tranquilos! Es sólo un temblor.

Temblor?! O homem chamou de "temblor" o que eu, com toda a autoridade de quem nunca passou por isso, chamei de terremoto grau 20.0 na escala Richter! Nada disso: vestimo-nos rapidamente e descemos para o térreo (coisa que, aliás, dizem que jamais se deve fazer de elevador... mas, cá entre nós: descer 32 andares de escada? O prédio ia cair antes de chegarmos no 20º).

Ufa. Agora estávamos em solo firme. Quer dizer… mais ou menos firme. Ainda rolavam umas tremidinhas. Sentamo-nos no hall do edifício, esperando algum sinal de que era hora de evacuar — no bom sentido, claro. Porque no outro, àquela altura, "nosotros" já estávamos evacuando de medo...

Não havia mais ninguém ali, além de nós e do porteiro noturno. Ninguém parecia ter se dado conta do "perigo mortal" que rondava o edifício inteiro.

Diante das nossas caras pálidas e olhares arregalados, o porteiro se aproximou... cantando:

"Quiero llevar este canto amigo

A quien lo pudiera necesitar.

Yo quiero tener un millón de amigos

Y así más fuerte poder cantar..."

E então, soltou a palavra mágica, sorrindo: "Roberto Carlos."

Seo Diego queria nos tranquilizar. Sabia que éramos brasileiros, e quis nos acolher com o que tinha de mais afetuoso: música e memória compartilhada.

— Esses tremores acontecem quase todos os dias aqui no Chile. Vocês não precisam se preocupar. Os prédios são todos construídos com estrutura para aguentar terremotos. Isso aqui foi só um temorzinho. Tranquilos!

Vendo que éramos os únicos panicosos do prédio, e diante da calma olímpica do Seo Diego, resolvemos voltar ao 32º andar, resignados — e um pouco envergonhados.

Mas antes de subir, ainda houve tempo pra uma última demonstração de carinho chileno:

— Carlos Alberto Torres, Félix, Piazza, Brito, Clodoaldo, Everaldo, Jairzinho, Gérson, Tostão, Pelé e Rivelino.

Sem pestanejar, o amigo porteiro recitou toda a escalação da seleção brasileira de 1970. E, como quem sentencia o óbvio, soltou:

— Pelé é o maior jogador do mundo de todos os tempos!

E com o dedão virado pra baixo, completou:

— Maradona, ó!

Enfim, voltamos ao nosso andar absolutamente convencidos de duas coisas:

Que não seria naquela madrugada que morreríamos num terremoto;

Que estávamos entre amigos — nossos irmãos latino-americanos do Chile.

Aldo Della Monica

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