Somos do tempo em que as cartas tinham gosto

Somos do tempo em que as cartas tinham gosto
by Aldo Della Monica

Ouça comigo uma linda música, ao final deste texto

Sou do tempo em que se colava selo com a ponta da língua — e havia, naquele gesto, mais intimidade do que em muito beijo apressado de hoje. A carta levava dias, semanas até... e mesmo assim sabíamos esperar. Porque o que importava não era a urgência, mas a verdade contida nas entrelinhas — tortas, caprichadas, com erros de gramática e excesso de sentimento.

Sou do tempo em que tirávamos o vinil da capa com um respeito quase litúrgico. Tínhamos rituais: sentar, abrir o encarte, deixar o cheiro do papel novo invadir o quarto. E então... a agulha. A agulha pousava como quem pedisse licença ao tempo. Escutávamos um disco inteiro. Com início, meio e fim. Hoje as faixas morrem sozinhas, perdidas no mar digital — a gente nem sabe o nome da canção que acabou de doer.

Sou do tempo dos bares com cadeiras de madeira e conversa nos olhos. Não se pedia a senha do wi-fi, pedia-se mais um chope e mais um motivo pra continuar ali. As palavras vinham com saliva, calor, hesitação. Hoje, nos teclados, elas chegam secas, frias, sem a entonação do afeto. Sem vírgulas de silêncio. E sem aquele sagrado espaço entre o que se pensa e o que se ousa dizer.

Sou do tempo em que ouvíamos rádio, esperando — quase implorando — que o programador colocasse aquela música. A música. A nossa. Quando vinha, parecia um milagre. Agora temos tudo o tempo todo. E tudo, o tempo todo, tem gosto de nada.

Sou também do tempo das filas nos bancos, das idas à biblioteca, das enciclopédias com lombadas douradas que empoeiravam no móvel da sala. A resposta talvez viesse. Talvez não. Mas no caminho, aprendíamos a perguntar melhor.

Hoje, resolvemos a vida sem sair de casa. E, ironicamente, ela parece cada vez mais fora do lugar. Temos inteligência artificial que responde com precisão, mas quem nos responde com compaixão?

Pagávamos caro para falar com quem amávamos. Hoje, não custa nada — exceto nossa atenção, nossa privacidade, nossa alma em troca de emojis apressados. Não temos mais lembranças, temos arquivos. Não temos mais fotos amareladas, temos imagens que desaparecem com um clique. O que era memória, virou backup. O que era afeto, virou nuvem.

Antigamente, escolhiamos com cuidado qual faixa ouvir. Hoje, o algoritmo decide por nós. E seguimos pulando de música em música como quem foge do próprio silêncio.

Não éramos geração Z, nem beta, nem essa sopa de letrinhas com prazo de validade e crise de identidade. Éramos só gente. E gente não precisa de rótulo: precisa de tempo, afeto e um pouco de papel em branco para errar à mão livre.

Que essa geração Beta, que agora começa a nascer, não seja só uma versão de testes. Que não precise de atualizações eternas. Que traga no peito um bug bonito: o da dúvida, o da poesia, o da vontade de colocar as coisas — e os valores — nos seus devidos lugares. E que, entre um chip e outro, saiba ainda escrever uma carta. Com selo. E com alma.
Aldo Della Monica


 

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